EVOCAÇÃO DE UM PIONEIRO: OOORICO CASTELO BRANCO
Djacir Menezes
Pelas alturas de 1915, a primeira matança mundial fervia na Europa; tinha sete
anos e ouvia os rumores dos acontecimentos sangrentos, que analisaria mais tarde.
A revista O espelho, que meu pai recebia, era ilustrada por desenhistas que imaginavam
as cenas violentas das trincheiras, onde espocavam obuses e soldados se
estraçalhavam para salvar as respectivas pátrias e a civilização. A instrução militar,
que a pregação do poeta Olavo Bilac tomara obrigatória nas escolas, vigorava
desde o curso primário. E como não agüentávamos o peso do mosquetão, manobrávamos
com as carabinas de pau fabricadas na Escola de Aprendizes Marinheiros,
imitando fuzis e sabres. Foi assim que aprendemos a marchar em ordem-unida,
toques de cometa, baioneta calada, ainda antes de entrar no Liceu do Ceará.
Tudo isso destinava-se a acendrar em nosso espírito o civismo nascente.
Era no Instituto Miguel Borges. O diretor, a figura que me impressionaria a vida
inteira, chamava-se Odorico Castelo Branco; nascera em 1876 na fazenda
Desígnio, município de União, no Piauí. Órfão, ainda criança, foi criado por sua
tia Candida Rosa Leal Castelo Branco, em Teresina. Com ela, que era professora,
aprendeu as primeiras letras. No Colégio Nossa Senhora das Dores, em Teresina,
dirigido por seu tio Miguel de Souza Borges Leal Castelo Branco, fez o curso secundário.
Concluído o curso, veio matricular-se na Escola Militar do Ceará; trancando
matrícula, fundou o Instituto Miguel Borges, em I!? de junho de 1900.
De 1914 a 1919 fui aluno do Instituto - e quero dar aqui um depoimento hist6-
rico sobre o esquecido e admirável educador, valendo-me para isso do livro autobiográfico
de sua ftlha Odorina Castelo Branco Sampaio, Um minuto de silêncio,
das notas que me adiantou e de minhas recordações pessoais do grande educador.
A primeira conclusão que tirei dessa noviça experiência, nesse período bafejado
pelo espírito guerreiro, continuada depois no Liceu do Ceará, foi em mim paradoxalmente
desfavorável à formação de inclinações bélicas. Os colegas, que
acabaram o curso de preparatórios e seguiram para a Escola Militar, obedeceram a
outros motivos, entre os quais, o principal seria a dificuldade de outra carreira, no
Ceará desse tempo, que não fosse a faculdade de direito ou as escolas de agronomia,
de odontologia e farmácia. Os mais abonados, iam à medicina, na Bahia. Recusadas
as duas oportunidades nativas, restava sentar praça no batalhão e ir ao
vestibular na praia do Realengo. Esse, o caminho de Moesia Rolim, Walter Pompeu,
Landri Sales, Juracy Magalhães, Jurandyr Mamede, José Brasil e outros.
Mas não desviemos o assunto. Quando meu pai me matriculou no Instituto Miguel
Borges, este ainda estava no casarão, um sobrado na Rua Floriano Peixoto,
no penúltimo quarteirão antes do Passeio Público: no andar superior, habitava o
diretor com sua ftlha única Odorina; no andar térreo, espaçoso e didático, instalavam-
se as classes do primeiro ao quarto ano. Logo no ano seguinte (1916), o
colégio mudava-se para a Praça Coração de Jesus, esquinando com o parque da
Liberdade, grandes janelas abertas à luz e ao sol, num amorável apelo à alegria e à
vida. Ao meio-dia, recreio; após, ao içar da bandeira, presente sempre o diretor,
cantava-se o Hino Nacional e prosseguiam as aulas até às três da tarde.
Creio que jamais houve diretor mais presente e participante da vida de uma comunidade
escolar. De uma autoridade impressionante, assegurava, sem quaisquer
recursos a castigos físicos, exceção de alguns cocorotes nos mais irrequietos, a
tranqüilidade e obediência do alunado. Recordando a sua figura, escreve a filha:
R.C. pol., Rio de Janeiro, 32(4)170-1, agoJout. 1989
"lembro-me, entretanto, de sua grande austeridade em todas as cousas, que era dotado
de grande coragem, extraordinariamente enérgico; de uma justiça ímpar e, au
lado de tudo isto, um coração extremamente sensível." São, realmente, estes traços
que ficaram indeléveis na mem6ria das gerações que tiveram a dita de o terem
como mestre.
O Prot: Castelo Branco era matemático: escrevera os compêndios adotados no
Instituto do primeiro ao quarto anos. Nestes, ao lado do português e da geografia,
a aritmética e a geometria figuravam no currículo primário em todos os graus. Lago
no primeiro ano, o aluno se familiarizava com o manejo, no quadro-negro, do
esquadro, da régua e de um enorme compasso de pau, para resolver problemas simples
de construção geométrica. Creio que foi a infância sob efeito dessa pedagogia
que me marcou o espírito, para sempre inclinado ao estudo dessas disciplinas - e
inspirou minhas primeiras direções filos6ficas, no Liceu, para o positivismo e para
a estima de professores de formação positivista, como Arquias Medrado e Henrique
Autran.
Essa estrutura curricular do colégio distinguia-o dos demais estabelecimentos
congêneres. Chamado ao quadro-negro, o aluno ouvia invariavelmente a proposta:
"dados duas retas e um ângulo construir um triângulo, etc." ou coisa na espécie.
A geometria era ensinada pelo compêndio de Olavo Freire. No quarto ano
primário, apareceu-nos, na aula de português, o livro cansativo de Afonso Celso,
o Porque me ufano de meu pafs. Mas parece que no intuito de corrigir aquele ufanismo
físico, que se traduzia em rios, cachoeiras e florestas as maiores do mundo,
havia, na parede da sala, ao lado de numerosos mapas, estes dizeres definitivos:
"A grandeza de um povo não se mede pela sua configuração geográfica." - advertência
que, depois, no alvorecer do espírito político, ressoaria sempre na minha
mente, pelos anos afora.
O Prof. Odorico Castelo Branco era villvo e adorava a filha, que foi educada
no Colégio da Imaculada Conceição, onde entrou logo após a morte dele. De lá
saiu mais tarde para casar com o Dr. Leão Sampaio, médico de grande nomeada,
nascido em Barbalha e deputado federal por mais de 40 anos, cercados ambos de
numerosa prole de filhos e netos que, pelo estudo e inteligência, escalaram altas
posições sociais e políticas.
Faço agora uma pergunta. Com sua formação matemática, seria o Prof. Castelo
Branco um positivista? Não creio. Apesar de conservar a fidelidade de longa viuvez
à esposa tão cedo falecida, tal conduta não deve ter obedecido às inspirações
da Ureligião da humanidade." Julgo que era um espírito independente, que o amor
à filha ia cada vez mais inclinando, como uma brisa mansa e suave, para as convicções
cristãs. Quem ler o Um minuto de silêncio,· tão repassado de ternura filial,
biografia dessa límpida personalidade de educador, surpreenderá o complemento
afetivo, aspecto omitido neste depoimento longínquo, feito com mais de 70 anos
de distância, testemunho de saudade e de gratidão àquela figura ímpar na hist6ria
da educação cearense
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